Hoje o dia foi programado para dar errado. Fiquei lendo
Harry Potter e as Relíquias da Morte até às 3h da manhã, e quando dá 8h a porcaria do interfone toca. Resisto a atender, mas finalmente percebo que só há minha alma viva nesse apartamento. Levanto, procuro meu par de chinelos lilás em vão, e me arrasto até a sala descalça mesmo (coisa que eu detesto).
– Quê – foi assim mesmo que eu atendi.
– É do 204? – perguntou uma voz irritantemente simpática de uma pessoa que eu não fazia idéia de quem era.
Uma onda de fúria tomou conta de mim.
– Não.
Já ia desligando, quando a voz continuou:
– É de onde?
– Não é do 204.
– Como eu faço pra falar com o 204?
Nesse momento, pensei em vociferar todos os palavrões possíveis enquanto meus olhos piscavam lentamente de tanto sono.
– Do mesmo jeito que você ligou para cá. Mas lembra de discar o 4 no final ao invés do 3.
Desligo.
Não importa quantas horas de sono eu tenha, sempre vou acordar mal-humorada, com tudo e com todos. É mais forte do que eu (mas aí vem uma pequena resolução de ano novo: acordar mais alegre - muito difícil). Volto para dormir. Como meu travesseiro é reconfortante quando minhas pálpebras já não resistem mais. Sinto que dormi. Sinto que estou sonhando. Não sei. É prazeroso demais dormir quando não se quer outra coisa a não ser dormir. Mas de repente, não mais que de repente, minha mãe chega em casa mais cedo que o normal, e abre a porta do meu quarto sem nenhuma delicadeza. Tá aí outra coisa que eu detesto. Porque ela faz de propósito! Sabe que eu vou acordar assustada. Porque eu me assusto com qualquer coisa, imagina só com a porta do quarto abrindo de forma bruta, e eu quase dormindo de vez...
– Você não acha que já tá na hora de levantar não? Já são 11h. Vai lá na padaria comprar vinagre pra mim.
Eu realmente tinha dormido mais. Mas o sono ainda era intenso, apenas respondi enquanto procurava a Dolly:
– Hum?
Dolly estava no chão, ah meu Deus.
– Tá surda é? Tô precisando de vinagre.
Poxa vida, mamãe realmente estava brava hoje. Resolvi não tentar competir com ela em termos de irritação, mas não pude deixar de retrucar:
– Mãe, você acabou de vir lá de baixo. Porque é que não já comprou...
Ela saiu do quarto resmungando algo como "esses filhos só têm má vontade com a gente". Desisti e levantei.
Débora está me passando algumas músicas de
P.S.: Eu te amo agora. A gente assistiu ao filme semana passada e amamos a trilha sonora. Ela acabou de colocar um avatar do filme no MSN. Temos essa mania, de colocar avatares dos filmes que gostamos. No meu está o de
Alguém como você. Não que isso interesse a vocês.
Voltando, desisti de argumentar que ela poderia ter comprado o vinagre antes de subir, e assim eu poderia estar dormindo ainda. Mas tenho um forte pressentimento de que ela me acordaria mesmo se já tivesse comprado. Levantei um pouco mais rápido dessa vez, abri a gaveta e peguei qualquer blusa e qualquer short. Depois de tomar meu café fumegante na minha caneca amarela, desci calmamente, até que me deparei com outra cena irritante: donas-de-casa sem ter o que fazer com seus filhos melequentos, todos sentados no primeiro degrau da portaria do prédio. Gente, pelo amor de Deus. Portaria é um lugar para a passagem de pessoas, e não para sentar e ficar batendo papo. Para esse último existem os inúmeros banquinhos de cimento distribuídos pelo condomínio. É o tipo de coisa que eu simplesmente não me
conformo.
Meus olhos reclamam com a intensa claridade sobre eles. Todos que me vêem percebem que eu acabei de acordar. Entro na padaria e... oh não. Pessoas conhecidas para dizer
oitudobemtudoevocêtudobemtambém. Bom, não poderia esperar nada além disso, afinal, é a padaria em frente ao meu condomínio. Só que às vezes é um saco cumprimentar pessoas que não se conhece direito quando não se está nem um pouco afim. Nem um pouco
mesmo. Por isso que adoro andar sem óculos. Sou míope e simplesmente não enxergo as pessoas. Mas ela estava perto demais, na verdade ela estava pegando óleo do lado do meu vinagre. Droga.
– Oi tudo bem? – a pessoa falou.
– Tudo e você? – tentei parecer simpática, o que pareceu não dar certo.
– Tudo bem também.
Ela me deu uma olhada sinistra e emendou:
– E aí, quando sai o resultado do vestibular?
Pensei em qualquer motivo para ela me perguntar isso. Não achei nenhum.
– Acho que no início de fevereiro... – respondi.
– E aí, está confiante? Dessa vez passa?
Fiquei chocada. Muito chocada.
Mesmo.
– Quê?
A pessoa nem percebeu meu espanto.
– Você tentou para qual curso mesmo?
Peraí. Pára tudo. Ela era praticamente minha vizinha e nem sabia que eu já tinha passado no vestibular.
– Hum... eu passei ano passado, já estou fazendo o curso. – juro que tentei ser educada (acho que consegui).
– Ah tá... – ela pegou um pacote de biscoito recheado na outra prateleira. – Tchau!
– Tchau – respondi, forçando um sorriso.
Só depois eu fui perceber que estava com uma camisa de vestibular do Darwin. E, para completar, comprei o vinagre errado.
É.